Minha chegada a Octopath Traveler 0 foi marcada por uma empolgação particular. Tendo me surpreendido com Octopath Traveler 2 como sendo o meu primeiro jogo da série, um título que representou um avanço significativo em sua franquia, a perspectiva de um novo capítulo era irresistível. Como alguém que nunca conseguiu se engajar com jogos do gênero gacha para celular, a oportunidade de experimentar a conversão de Octopath Traveler: Champions of the Continent em uma experiência premium soou como a forma ideal de vivenciar uma das produções móveis mais aclamadas da Square Enix.
Este novo projeto se configura como um híbrido ambicioso. Ele resgata a narrativa e a jogabilidade do título mobile de 2020, reformulando-os em um RPG de turnos autossuficiente. A premissa coloca o jogador no centro de Orsterra, o continente já conhecido dos fãs, mas com uma reviravolta fundamental: você é o protagonista. Pela primeira vez na série, é possível criar um personagem personalizado, definindo sua aparência, voz e personalidade. Esta jornada pessoal se estrutura em torno de uma dicotomia entre vingança e restauração, impulsionada por três narrativas principais de Poder, Riqueza e Fama, cada uma encarnada por um antagonista responsável por um grande sofrimento no mundo.
A estrutura clássica da franquia é preservada com o consagrado sistema de combate Break & Boost, os gráficos em estilo HD-2D e as interações com NPCs através das Ações de Caminho. No entanto, uma grande inovação promete redefinir o engajamento do jogador: um sistema de construção de cidades. Esta mecânica permite reconstruir sua cidade natal, convidando viajantes para habitá-la, adicionando uma camada profunda de agência e um senso tangível de progresso personalizado ao longo da épica aventura.
Octopath Traveler 0 será lançado no PlayStation 5 em 04 de Dezembro de 2025.
Vídeo de Gameplay do Octopath Traveler 0
História
É importante compreender desde o início que este jogo explora os eventos que antecedem o primeiro título da série. A narrativa de Octopath Traveler 0 tem como palco inicial Wishvale, um local sereno que celebra anualmente o Dia da Reverência. Este festival é um símbolo de paz e união, marcado por sorrisos genuínos e pela chama azul tradicional, um emblema de proteção para toda a região. A tranquilidade, no entanto, mostra-se frágil. Em um giro brutal do destino, a cidade é consumida por chamas vermelhas durante um ataque súbito, um evento catastrófico que destrói o lar do protagonista e altera para sempre o rumo de suas vidas.
Dessa tragédia, surge uma escolha crucial que define a jornada. O jogador, na pele de “O Escolhido”, é colocado no centro de um conflito íntimo: seguir pelo caminho da vingança contra os responsáveis pela devastação, ou empenhar-se na busca pela restauração, tentando reconstruir as esperanças e os escombros do que foi perdido. Esta dualidade entre destruir e curar forma o coração emocional da aventura.
Ao explorar a vastidão de Orsterra, os fãs reencontrarão elementos fundamentais do universo, como os Anéis Divinos. Estes artefatos não são meros objetos de poder; eles carregam um profundo peso mitológico e estão intrinsecamente ligados ao conflito central, influenciando diretamente as motivações dos personagens que se unem à causa.
A campanha principal concentra-se inicialmente na perseguição aos três arquitetos da destruição: Herminia (Mestre da Riqueza), Tytos (Mestre do Poder) e Auguste (Mestre da Fama). Sendo uma reformulação ambiciosa do Octopath Traveler: Champions of the Continent, originalmente para mobile, o jogo promete uma jornada extensa de cerca de 100 horas em sua campanha principal, um escopo que se expande ainda mais com uma quantidade significativa de conteúdo secundário para ser descoberto.
Campanha
Octopath Traveler 0 é uma experiência surpreendentemente madura, ambiciosa e literária para um RPG com tão pouco orçamento. Como prequel do primeiro Octopath Traveler, ele abandona a estrutura fragmentada do original em favor de uma campanha mais unificada, dividida em grandes rotas narrativas que giram em torno de antagonistas poderosos e profundamente humanos. Em vez de oito heróis independentes, o jogador acompanha um protagonista silencioso cujo destino se cruza com figuras que, cada uma à sua maneira, levaram ao extremo um valor humano fundamental corrompido pelos Divine Rings. A campanha completa combina comentário social, tragédia pessoal e mitologia própria, entregando um dos roteiros mais fortes da série.
O jogo inicia com os três grandes caminhos conhecidos como Master of Wealth, Master of Power e Master of Fame. Cada um deles apresenta um vilão central que usa um dos Divine Rings, artefatos capazes de amplificar virtudes humanas até que se transformem em obsessões destrutivas. Herminia, a Witch of Greed, é um dos destaques mais impactantes: elegante, cruel e narcisista, ela domina a sociedade aristocrática com uma combinação de manipulação psicológica e idealização estética. Sua rota é um mergulho perturbador na idolatria da beleza e no abismo social formado por desigualdade, perfeccionismo e violência emocional. A narrativa mostra com precisão como Herminia molda todos à sua volta para reforçar seu mundo idealizado, tornando sua derrota um dos momentos mais catárticos do jogo.
A rota de Master of Power, centrada em Tytos, segue um caminho diferente ao explorar o culto ao heroísmo e a militarização da sociedade. Tytos é construído como um tirano trágico que acredita sinceramente no próprio mito. Sua busca por “poder absoluto” o consome e destrói aqueles que tentam segui-lo. Há excelente uso de política interna, conflitos de lealdade e ambientação militar para ressaltar a ideia de que a força, quando transformada em dogma, se torna opressão. A rota alterna tensão constante e drama pessoal, culminando em um confronto que simboliza a batalha entre autoridade imposta e vontade coletiva.
A narrativa do Master of Fame, estrelada por Auguste, é talvez a mais memorável do jogo. Auguste é brilhante, inseguro e devastadoramente egocêntrico — um artista disposto a sacrificar tudo e todos pela “obra perfeita”. Sua rota mistura teatralidade, manipulação emocional e abuso artístico, explorando como talento e ego podem se tornar armas. Os capítulos são estruturados como atos de uma peça, e cada cena reforça a crescente distorção da mente de Auguste. Sua queda é tratada com um tom trágico e grandioso, e o desfecho funciona como uma crítica contundente à idolatria criativa.
A conclusão desses três caminhos leva ao arco do Master of All, em que Pardis III aparece como o responsável por manipular os acontecimentos por trás dos Masters. Embora sua caracterização seja menos emocional do que a dos vilões originais, o arco amplia o escopo da narrativa e revela como os anéis se conectam a uma ameaça maior. É o momento em que o jogo transita de histórias isoladas para uma conspiração continental, dando ao jogador uma visão clara da mitologia própria da obra. É um clímax que consolida a primeira metade da campanha.
Após esse clímax inicial, o jogo busca surpreender ao apresentar as rotas Bestower of Wealth, Bestower of Power e Bestower of Fame. Ao contrário dos Masters, que eram figuras grandiosas, os Bestowers são antagonistas profundamente humanos, politicamente influentes e emocionalmente quebrados. Oskha, do Bestower of Wealth, é um dos mais devastadores. Ele não é movido por ganância, mas por miséria, trauma e ressentimento. Sua história é um duro comentário sobre desigualdade social e sobre o legado destrutivo que a rota da Herminia deixou. É uma das partes mais emocionalmente cruas do jogo, revelando um lado de Orsterra que os Masters apenas sugeriam.
A rota de Tatloch, no Bestower of Power, é sombria de outra maneira. Ele representa a visão fria e tecnocrática de um mundo reorganizado por “força” e “eficiência”. Seu arco explora o fascínio pelo progresso desumanizado e por conceitos de controle social que ignoram a fragilidade humana e o uso de vidas para perpetuar uma juventude eterna. É um confronto entre racionalidade extrema e humanidade, reforçado por uma ambientação tribal e uma atmosfera ideológica densa onde as pessoas são governadas pelo medo e pelo poder.
Por fim, a rota de Ceraphina, no Bestower of Fame, lida com espiritualidade, fanatismo e a busca por transcendência. Ceraphina é uma figura paradoxal: poderosa e frágil ao mesmo tempo, movida por um desejo quase desesperado de dar sentido à própria existência. Seu arco é essencial para elevar os conceitos místicos da campanha e preparar o terreno para o verdadeiro final da história.
Essas três rotas desembocam no arco final, o Bestower of All, que funciona como a verdadeira conclusão da campanha principal. Aqui, o jogo finalmente revela a origem dos Divine Rings, o papel do protagonista e a força espiritual que permeia todo o continente. Embora o ritmo possa variar, o final oferece grande recompensa narrativa, fechando com competência todas as linhas temáticas desenvolvidas até ali: política, espiritualidade, psicologia, desigualdade e ambição humana.
O início de Octopath Traveler 0 cativa, mesmo para quem não é fã de protagonistas silenciosos. O grande trunfo do jogo está na forma realista e crua com que aborda temas adultos, expondo a corrupção humana por poder, fama e riqueza. A narrativa revela habilmente a natureza corruptível de quase todos os seres em Osterra, criando um contraste intrigante ao introduzir personagens com um perfil altruísta e ético sólido. Esta tensão permanente é a base do enredo: ninguém está verdadeiramente a salvo da crueldadepresente neste mundo. É notável como o jogo não se deixa limitar por seu estilo de arte, que à primeira vista pode parecer ingênuo ou infantilizado, mas que serve como um véu para histórias surpreendentemente sombrias. Neste aspecto, os vilões surgem como as verdadeiras estrelas do roteiro, conferindo profundidade e complexidade à trama.
No entanto, a experiência narrativa encontra seus percalços. O problema principal surge a partir do segundo arco, centrado no Rei Pardis III. Este segmento da história arrasta-se de forma perceptível, criando a sensação de que o jogador está sendo enrolado. A trama dá voltas e mais voltas em torno de acontecimentos, apenas para, no final, retornar praticamente ao mesmo ponto, sem oferecer desenvolvimentos significativos para o foco central da história: os misteriosos Anéis Divinos.
Felizmente, a narrativa recupera seu fôlego ao avançar para um novo conjunto de arcos, dedicados a Poder, Riqueza e Fama. Esta nova fase devolve o impulso à aventura, embora os arcos centrados especificamente no Poder careçam de ganchos narrativos suficientemente fortes para manter o jogador totalmente engajado, destacando-se de forma menos impactante em relação aos outros.
No conjunto, Octopath Traveler 0 entrega uma das campanhas mais densas, coesas e emocionalmente fortes entre JRPGs de sua escala. A escrita é adulta e corajosa, os antagonistas são memoráveis e cada rota acrescenta novas camadas à compreensão de Orsterra. Há fragilidades no ritmo e limitações inerentes ao uso de um protagonista silencioso, mas o impacto emocional, a profundidade temática e a construção narrativa compensam com folga. O jogo prova que pode oferecer uma experiência comparável — e em certos aspectos superior — a muitos títulos premium da Square Enix. É um épico sombrio, humano e artisticamente ambicioso que merece ser lembrado como uma peça central no universo de Octopath.
Gameplay
O sistema de combate de Octopath Traveler 0 mantém a essência estratégica da série. A base permanece reconhecível para qualquer fã: batalhas por turnos com foco em quebra de escudos, exploração de fraquezas e timing inteligente de Boost Points, mas aqui ele expande essa estrutura ao colocar oito personagens simultâneos em campo, permitindo uma variedade de formações e combinações muito maior do que nos jogos principais. É aqui que o jogo se destaca de verdade — a sinergia entre habilidades, papéis e sub-classes.
A presença de oito personagens cria uma sensação constante de movimentação estratégica. O jogador precisa pensar tanto nos personagens da linha de frente quanto nos que estão recuados, já que posicionamento importa: quem está atrás recupera SP e HP por turno, o que naturalmente incentiva um rodízio tático que deixa as batalhas mais dinâmicas. Esse sistema torna fundamental saber quando avançar um atacante para quebrar escudos e quando recuar para preservar recursos. É um ciclo contínuo de ofensiva e descanso que torna cada turno significativo.
A mecânica de Shield Points permanece como o coração do combate. Cada inimigo possui fraquezas específicas — espadas, lanças, punhos, livros, fogo, luz, vento etc. — e descobrir essas brechas é essencial. A sensação de progresso quando o jogador finalmente encontra a combinação certa de ataques que derruba a defesa de um chefe é tão satisfatória quanto nos Octopath tradicionais. E, quando o break acontece, surge o ponto alto do combate: infligir o máximo de dano possível antes que os escudos se regenerem. A gestão dos Boost Points, portanto, é crítica. Gastá-los cedo demais pode comprometer a quebra; segurá-los demais pode prolongar perigosamente a luta. É um equilíbrio delicioso.
Outro aspecto em que o jogo surpreende é na maneira como transforma personagens em peças únicas e complementares. Cada personagem tem funções claramente definidas — quebradores rápidos, buffers, debuffers, curandeiros, nukers elementais, atacantes físicos lentos porém brutais — e a verdadeira força do combate vem de aprender a construir times que amplifiquem as qualidades uns dos outros. Habilidades como redução de defesa, buffs de ataque, multiplicadores condicionais e efeitos acumulativos dão às batalhas um caráter quase de quebra-cabeça, especialmente nos encontros de alto nível.
Os chefes merecem destaque: muitos são criados para exigir controle absoluto de turnos, punições severas se o jogador errar o timing de um break e mudanças de fase que exigem adaptações rápidas. Algumas lutas chegam perto de um estilo de “raid single-player”, com padrões memoráveis, ataques em área, condições especiais e exigência de preparo prévio do grupo. Em um jogo, é impressionante como esses confrontos conseguem transmitir a sensação de amplitude e desafio dignas de um JRPG completo.
Os pontos fracos começam na repetição inevitável do grind, algo que acompanha praticamente todos os jogos de JRPG. Algumas batalhas contra mobs se tornam monótonas com o tempo, mesmo com recursos de velocidade acelerada. Outro ponto sensível é a repetição estrutural das batalhas contra mobs.
Há também o problema do desequilíbrio de dificuldade em certos picos. Como o jogo possui uma certa liberdade de escolha por onde o jogador deseja começar um arco, no término de um, acontece de estarmos muito mais fortes e os outros arcos restantes não acompanham muito bem o seu nível, tornando os combates dos próximos arcos contra inimigos comuns e chefes fáceis, indo ser nivelados apenas no chefe final.
No geral, o sistema de combate de Octopath Traveler 0 é um dos grandes motivos pelos quais o jogo se destaca no gênero. Ele combina a profundidade dos Octopath principais, resultando em batalhas que são tanto acessíveis quanto surpreendentemente táticas. A presença de oito personagens simultâneos, a importância do posicionamento, o sistema de break e o gerenciamento de Boost Points formam um conjunto robusto e viciante.
Jobs
O sistema de Jobs em Octopath Traveler 0 preserva a estrutura clássica da série. Cada personagem pertence a uma das oito classes tradicionais — como Warrior, Cleric, Apothecary, Scholar, Hunter, Dancer e etc — e essas classes definem não apenas o papel em combate, mas também quais armas podem ser usadas, quais elementos são dominados e como o personagem contribui para a quebra de escudos. Ao contrário dos Octopath anteriores, este não oferece troca livre de Jobs para outros personagens, apenas para o principal: os personagens são rigidamente fixados aos seus papéis, o que reduz a flexibilidade mas aumenta a identidade individual de cada membro da equipe. Isso torna o elenco coeso e incentiva o jogador a pensar em sinergias de classe, escolhendo personagens que se complementam em buffs, debuffs e estilos de ataque. Apesar da limitação, o design é muito eficaz porque os personagens têm kits profundos e distintos, e a rotação de oito membros no campo dá espaço para explorar essa variedade.
Equipamentos e Builds
O sistema de equipamentos segue uma filosofia igualmente simples e funcional. Armas, armaduras e acessórios influenciam diretamente os atributos primários do personagem — como ataque físico, ataque elemental, defesa ou velocidade — e desempenham um papel importante na preparação para chefes mais avançados. A progressão de equipamentos é direta, mas significativa, baseada na busca por lojas mais fortes, baús escondidos e drops raros. Como não há um sistema de crafting complexo, o aprimoramento de equipamento depende muito mais da exploração e de eventos. A clareza na função dos itens evita confusão e reforça a ideia de que a força do personagem vem principalmente do seu kit de habilidades, e não de upgrades artificiais.
Level Design
O level design de Octopath Traveler 0 traduz a identidade da série de forma competente. As regiões seguem a lógica clássica da franquia, com rotas lineares pontuadas por desvios opcionais, baús escondidos e pequenos segredos que recompensam a curiosidade. A direção de arte em HD-2D é o que realmente eleva esses espaços, dando profundidade visual às cidades e criando ambientes que parecem vivos mesmo com mapas menores e simples.
As dungeons seguem um padrão semelhante: estruturas leves, com caminhos curtos e poucas ramificações, que priorizam ritmo rápido e acessibilidade. Não há puzzles elaborados ou desafios ambientais complexos; o foco recai mais na atmosfera do que na mecânica.
Um ponto forte é como o level design apoia a narrativa. Cada cidade e região reforça o clima do arco em que aparece, traduzindo temas como riqueza, decadência, fanatismo ou militarismo por meio do cenário. O uso de Danger Levels também cria barreiras naturais que incentivam revisitar áreas mais adiante, dando ao mundo uma sensação modesta, mas eficaz, de progressão.
No geral, o level design de CotC é simples, bonito e narrativamente coeso. Ele não surpreende com complexidade, mas oferece um mundo consistente, agradável de explorar e perfeitamente moldado à proposta de um JRPG.
Reconstruindo Wishvale
Wishvale é onde o jogo surpreende com algo mais autoral. A vila funciona como uma espécie de centro de reconstrução progressiva, permitindo ao jogador desenvolver estruturas que oferecem pequenas vantagens acumulativas. Melhorias em Wishvale concedem buffs passivos, itens, lojas de equipamentos e itens, incremento de moedas, facilitação de upgrades e recursos adicionais, criando um senso de crescimento contínuo que acompanha a jornada. O sistema é leve, mas recompensador: cada nova construção ou melhoria traz benefícios tangíveis, reforçando a sensação de estar investindo em algo permanente dentro do mundo. É um ciclo agradável, que mistura economia, exploração e progressão sem se tornar intrusivo ou cansativo. Wishvale acaba funcionando como uma espécie de “base” do jogador, uma âncora de progressão paralela que adiciona profundidade ao ritmo geral da campanha.
Gráficos e Direção de Arte
Um dos pilares da identidade visual do jogo é, sem dúvida, o uso magistral da iluminação volumétrica. Esta técnica não se limita a ser um mero efeito decorativo; ela veste cada cenário com uma atmosfera única e guia os olhos do jogador de forma intuitiva. Seja nas vilas com lanternas cintilantes ao entardecer, nas florestas envoltas por névoa ou nos templos banhados por uma luz dourada, a iluminação acentua caminhos, destaca pontos de interesse e enriquece elementos arquitetônicos. O resultado é uma identidade visual marcante para cada região, que se mantém legível e coesa mesmo em telas de dimensões reduzidas.
Os ambientes são meticulosamente detalhados. Ambientes urbanos pulsam com vida, repletos de pequenas decorações, bandeiras esvoaçantes e os movimentos de mercados movimentados. Florestas transpiram um ar orgânico com sua folhagem densa, pedras úmidas e reflexos de água, enquanto cavernas e templos exibem texturas antigas que respiram história e mitologia. Tudo isso é amarrado por uma paleta de cores trabalhada com extremo cuidado, que alterna entre tons vibrantes e saturados para representar cidades vivas, e cores frias e melancólicas para áreas assombradas pela pobreza, fanatismo ou corrupção, sempre em perfeita sintonia com o tom narrativo de cada arco.
No entanto, a experiência gráfica é uma narrativa de contrastes gritantes. É desconcertante que, ao lado de tanta maestria artística, nos deparemos com texturas de cenário notavelmente borradas e de baixa resolução, que quebram abruptamente a imersão. Para confirmar que não se tratava de uma impressão subjetiva, retornei ao título anterior da série. A comparação foi elucidativa: o visual por vezes inacabado de Octopath Traveler 0 é uma realidade. Elementos cruciais, como os sprites dos personagens, parecem genuinamente inferiores aos do primeiro jogo, indicando que a questão vai além de uma mera comparação com títulos mais modernos.
O jogo sofre também com pequenos travamentos e engasgos durante trocas de tela, especialmente ao entrar em novas áreas ou ao carregar cenas mais pesadas. São microtravamentos curtos, porém perceptíveis, que quebram momentaneamente a fluidez da exploração.
A raiz dessa disparidade técnica provavelmente reside na origem do projeto. A hipótese mais consistente é que este jogo seja baseado em “Champions of the Continent”, um título originalmente concebido para dispositivos móveis. Consequentemente, os recursos gráficos em uso são intrinsicamente mais antigos. Esta herança técnica limita o potencial visual, resultando em uma apresentação que, embora funcional e pontualmente bela, é lamentavelmente inconsistente em sua execução mais fundamental.
Trilha Sonora e Som
A trilha sonora de Octopath Traveler 0 é, sem exagero, um dos maiores destaques do jogo e um dos fatores que o alinham tão claramente à excelência da franquia. Sob a supervisão e o estilo característico de Yasunori Nishiki, o jogo oferece uma seleção musical que combina orquestração emocional, melodias temáticas marcantes e variações refinadas que acompanham as nuances de cada região, personagem e arco narrativo.
Cada área do jogo possui uma identidade própria definida pela música. Cidades prósperas trazem arranjos calorosos com cordas e sopros suaves, enquanto regiões mais sombrias usam melodias em tons menores, instrumentos mais secos e ritmos mais contidos. A trilha é profundamente narrativa, atuando não apenas como pano de fundo, mas como um componente emocional que reforça os temas centrais de cada arco como riqueza, fama, poder, fanatismo, decadência, esperança. Em muitas situações, é a música que conduz o sentimento antes mesmo do texto.
As composições de batalha, por sua vez, são vibrantes e cheias de energia. O uso de percussão marcada, ostinatos de cordas e metais poderosos cria uma sensação de urgência que se alinha perfeitamente ao ritmo estratégico do combate. As músicas de chefes são particularmente memoráveis, com transições dramáticas e temas épicos que elevam a importância dos confrontos. Apesar do hardware mais modesto, o jogo mantém camadas ricas de instrumentos, garantindo que cada luta importante pareça grandiosa.
Em uma decisão que eleva significativamente a experiência, Octopath Traveler incorpora dublagens em inglês e japonês em vários momentos-chave da narrativa. Esta camada de produção sonora serve como um recurso dramático estratégico, potencializando cenas carregadas de emoção e dando voz ao drama da campanha.
Embora se note certa inconsistência na qualidade de gravação de um número reduzido de personagens, o trabalho no geral é notavelmente bom. Quando está no seu ápice, a dublagem transcende seu papel básico, criando momentos de pura imersão onde a profundidade emocional da história ressoa com o jogador de maneira visceral. É um acréscimo que demonstra cuidado em enriquecer a narrativa além do texto escrito.
Vale a Pena?
Octopath Traveler 0 é um daqueles raros casos em que um projeto de origem modesta alcança uma ambição inesperadamente grandiosa. Ele não tenta imitar seu antecessor; em vez disso, cria sua própria identidade ao apostar em uma narrativa mais unificada, densa e contundente — e essa aposta funciona. A campanha é, sem dúvida, a maior força do jogo, capaz de entregar dramas humanos complexos, vilões memoráveis e uma reflexão madura sobre os extremos da natureza humana. Mesmo com tropeços no ritmo — sobretudo no arco de Pardis III —, o conjunto se mantém poderoso, emocional e surpreendentemente literário.
No gameplay, o sistema de combate honra a tradição da série e a expande com inteligência. A estrutura de oito personagens simultâneos e o foco no rodízio estratégico tornam cada batalha um quebra-cabeça tático prazeroso, ainda que o grind e os inevitáveis picos de desequilíbrio possam comprometer o ritmo entre os grandes momentos. O sistema de Jobs mais rígido funciona bem graças ao design forte dos personagens, e a progressão por equipamentos, embora simples, cumpre seu papel com segurança. Wishvale, por sua vez, adiciona uma camada de progressão leve mas recompensadora, oferecendo um senso de lar e construção que complementa a jornada.
Visualmente, Octopath Traveler 0 é uma obra de contrastes. A direção de arte em HD-2D continua deslumbrante, marcada por iluminação evocativa, atmosferas ricas e cenários que respiram narrativa. Mas o impacto é ocasionalmente sabotado por limitações técnicas herdadas de sua origem mobile — texturas borradas, sprites inconsistentes e momentos que passam a sensação de um título menos refinado que seus irmãos de console. Ainda assim, quando o jogo acerta, acerta com força.
A trilha sonora, por outro lado, é uma vitória absoluta. O trabalho musical de Yasunori Nishiki é simplesmente extraordinário, elevando cada cena, cada região e cada confronto a um patamar emocional raro para um RPG gratuito. Somada a dublagens competentes, ela compõe uma experiência sonora que rivaliza com produções de grande orçamento e ajuda a sustentar o impacto dramático da campanha.
Diante de tudo isso, a resposta inevitável é simples: vale a pena jogar? Sem dúvida. Octopath Traveler 0 transcende sua plataforma de origem com uma história que merece ser vivida, vilões que merecem ser lembrados e uma trilha que merece ser ouvida com atenção. Ele não é perfeito, tropeça aqui e ali, e suas raízes modestas às vezes se revelam. Mas, quando visto como um todo, oferece uma experiência narrativa e mecânica que pode rivalizar com muitos JRPGs da Square Enix.
Para quem ama a série, este jogo é indispensável. Para quem busca uma boa história, ele é surpreendente. E para quem aprecia JRPGs com coração, densidade e visão artística, Octopath Traveler 0 não apenas entrega o que promete — ele vai além. É um título que, mesmo preso às limitações de seu formato, alcança momentos de brilho que poucos jogos conseguem.
*Jogo analisado no PS5 com cópia digital fornecida pela Square-Enix.
Confira a Política de Reviews do PS Verso
Notas do Jogo

Título: Octopath Traveler 0
Descrição do jogo: Octopath Traveler 0 é um jogo eletrônico de RPG baseado em turnos, desenvolvido pela Square Enix e Dokidoki Groove Works , e publicado pela Square Enix.
Gênero: JRPG e Turnos
Lançamento: 04/12/2025
Produtora: Square Enix
Distribuidora: Square Enix
Nota
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História - 9/10
9/10
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Jogabilidade - 8/10
8/10
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Gráficos - 7.5/10
7.5/10
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Trilha Sonora e Som - 9/10
9/10
Veredito
Octopath Traveler 0 destaca-se como um projeto de ambição notável, construindo uma identidade própria em vez de apenas imitar seu antecessor. Sua maior força está na narrativa unificada e contundente, que explora dramas humanos complexos e apresenta vilões memoráveis com uma maturidade rara. Apesar de tropeços no ritmo, principalmente no arco do Rei Pardis III, a campanha mantém um impacto emocional poderoso que eleva a experiência.
A jogabilidade honra a tradição da série com um sistema de combate estratégico que funciona como um quebra-cabeça gratificante, utilizando oito personagens simultaneamente. Embora o progresso ocasionalmente sofra com grind e desequilíbrios de dificuldade, a progressão por equipamentos e o sistema de Jobs oferecem uma base sólida e satisfatória. A adição de Wishvale como um lar personalizável introduz uma camada de construção e pertencimento que complementa bem a jornada.
Visualmente, o jogo é uma experiência de contrastes marcantes. A direção de arte em HD-2D é deslumbrante, com iluminação e atmosferas que criam cenários narrativos ricos, mas sofre com limitações técnicas herdadas de sua origem mobile, como texturas borradas e sprites inconsistentes. No entanto, a trilha sonora extraordinária de Yasunori Nishiki eleva cada momento a um patamar emocional excepcional. No conjunto, é uma jornada que vale a pena, superando suas limitações para oferecer uma experiência que pode rivalizar com muitos JRPGs.
Vantagens
- História madura e emocionante
- Vilões excelentes, entre os melhores da franquia.
- Campanha coesa, ambiciosa e bem escrita.
- Wishvale é recompensadora e dá sensação de progresso.
- Dublagens fortes em momentos-chave.
Desvantagens
- Texturas borradas e sprites inferiores ao Octopath original.
- Ritmo irregular, com o arco do Pardis III arrastado.
- Desbalanceamento entre rotas, deixando algumas fáceis demais.
- Dungeons simples, sem puzzles ou exploração profunda.
- Jobs fixos, reduzindo flexibilidade.






























